Vasco Coimbra

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“O que tem de ter um bom estudante de medicina? Curiosidade, curiosidade e curiosidade” – Entrevista a Fátima Carneiro

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Depois de Manuel Sobrinho Simões, Fátima Carneiro foi a segunda portuguesa a ser eleita a patologista mais influente do mundo pela revista The Pathologist. Diretora do serviço hospitalar de Anatomia Patológica no Hospital de São João, professora catedrática na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e investigadora no IPATIMUP, Fátima Carneiro esteve à conversa com o curso de Ciências da Comunicação da Universidade do Porto. As explicações sobre como funciona a eleição da revista, como se consegue gerir um “tripé de atividades” e as caraterísticas que fazem os bons médicos para ler nesta entrevista.


Boa tarde professora Fátima Carneiro. Começo por lhe perguntar porque é que nem sempre gosta de falar com jornalistas?

[Risos] Não é não gostar de falar com jornalistas. Gostar mesmo, gosto das atividades a que me dedico. Prefiro o recato da minha atividade do que, propriamente, a exposição da mesma. Não é nenhuma posição de princípio contra comunicar com as pessoas. Nesta altura, em relação a este acontecimento (distinção como a Patolista mais influente do mundo pela revista The Pathologist), apesar de tudo, é mais do que um reconhecimento individual. Há valor individual e não seria correto não considerar essa faceta desta nomeação mas há, nesta circunstância, muito mais do que um valor individual. Há, no fundo, a projeção de uma atividade sobre a qual nem toda a gente tem informação suficiente. No fundo, nós pensamos que temos a responsabilidade de dar conhecimento aquilo que fazemos, porque as pessoas têm curiosidade e porque traduz o reconhecimento de um conjunto de votantes de todo o mundo. Esta é uma votação que é feita através de uma revista, que é a The Pathologist. É pedida esta eleição a todos os assinantes, que vêm dos quatro cantos do mundo, e que têm de dar uma opinião, eleger alguém e fundamentar o porquê de o terem feito. Portanto, isto significa que a Patologia e a Anatomia Patológica portuguesas, nesta altura, têm uma projeção internacional. As pessoas são conhecidas: na lista dos 100 eleitos há, também, outros portugueses e, portanto, as pessoas são conhecidas e a Patologia portuguesa tem projeção numa plataforma que é internacional e essa circunstância deve dar satisfação. Deve dar satisfação porque nós trabalhamos em instituições que são de muito valor, gostamos do que fazemos cá e isto só é possível porque, na realidade, essas instituições são muito boas e há que saber tirar partido dos locais onde se trabalha. No meu caso concreto, sou patologista e, portanto, faço diagnósticos ao microscópio relativamente a lesões que são retiradas dos doentes. Depois, o nosso diagnóstico é fundamental para se discutir qual o tratamento mais adequando, o acompanhamento dos doentes, etc. Para além de fazer diagnóstico como patologista no Hospital de São João, sou professora na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e isto dá uma grande possibilidade de, no fundo, acumular experiência, ter a capacidade de transmitir essa experiência aos alunos, integrando nestas atividades a investigação. No fundo, este tripé de áreas de que estou a falar: o diagnóstico na Anatomia Patológica, o ensino na Faculdade de Medicina e a investigação no IPATIMUP, reúne três tipos de atividades que se integram de maneira harmoniosa e que traduzem colaboração entre três instituições. Este conceito de interatividade colaborativa entre instituições é-me muito grato, portanto, eu extraio muita satisfação daquilo que é a minha atividade diária nestas diferentes vertentes.

“No ensino pré-graduado, dá-se oportunidade aos alunos de fazem perguntas e tentarem encontrar respostas”

As suas três atividades realizam-na de forma diferente ou é impossível separá-las?

É praticamente impossível porque, ao longo do meu dia, quando começo a trabalhar, não tenho na minha cabeça “durante estas horas estou a trabalhar para o hospital, naquelas estou a trabalhar para a faculdade…”. A nossa atividade é, realmente, muito interpenetrada. A minha relação profissional decorre da integração harmoniosa deste tipo de atividades. Por exemplo, eu estou a fazer diagnóstico e a trabalhar com internos. Assim, estou numa atividade, a de produzir diagnósticos, que é uma atividade clínica, mas ao mesmo tempo, participando numa outra vertente que é a do ensino. Quando eu estou a falar de ensino, o ensino pode ser um ensino pós-graduado, o que se faz com internos porque já são médicos; ou pré-graduado: quer sob a forma de conferências, quer sob a forma de acolher os alunos entre nós. No ensino pré-graduado, dá-se a oportunidade dos estudantes trabalharem aqui, terem uma experiência de laboratório, fazerem perguntas, tentarem encontrar respostas e, muitas vezes, essas perguntas vêm de problemas que resultam da investigação que se vai desenvolvendo. Há bem pouco tempo, antes de vocês terem chegado, estava a falar com um estudante que está agora no quinto ano e que quer desenvolver investigação durante este próximo ano letivo. O que ele pretende, no fundo, é fazer um trabalho, que este trabalho possa ser publicado e que dele possa beneficiar numa unidade curricular chamada “Projeto de Opção”. Portanto, ele fez a opção de vir para Anatomia Patológica, trabalhar num modelo, o do cancro do estômago, que é um modelo em que nós temos bastante experiência. Portanto, o ensino tem várias vertentes: tem uma vertente universitária e uma vertente que é uma extensão da atividade hospitalar na formação dos internos. Nós consideramos que a formação é muito importante: a qualidade da formação e a continuidade da formação. Eu tenho tanta necessidade de formação como os mais novos, porque o conhecimento acumula-se, ao longo do tempo, de uma maneira que não é controlável por nós. No fundo, estou a falar-lhe de duas facetas: a formação pré e pós-graduada e a educação contínua. Um profissional que tem uma atividade no domínio de que está a tomar conhecimento, tem de fazer uma atualização permanente dos seus conhecimentos. É o que exigem os novos conhecimentos, novas tecnologias, novas terapêuticas, a validação dessas terapêuticas na nossa realidade, etc.

Se fosse aluna de medicina nesta altura, sentir-se-ia intimidada se um dos seus professores fosse considerado o patologista mais influente do mundo?

Não, acho que não. Acho que não porque, por exemplo, este mesmo estudante que esteve aqui há pouco tempo, também é assinante desta revista e saber isso foi uma completa surpresa para mim. Foi-lhe dada a oportunidade de voltar e ele também voltou. Eu acho que os estudantes da FMUP são muto solidários, têm muito corpo FMUP e, no fundo, sentem que esta é uma maneira de distinguir a Faculdade. Eles votaram, é uma figura da FMUP, ajuda a dar-nos visibilidade e isso, coletivamente, é importante. Foi um dos aspetos mais gratificantes: verificar a satisfação que despertou junto de pessoas que, direta ou indiretamente, participaram no processo.

O facto de a média de entrada no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar ter, pela primeira vez, ultrapassado a da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto merece-lhe algum comentário?

Ultrapassou? Não sabia que tinha ultrapassado. Isso quer dizer que a nota…

Que a média de entrada na faculdade do último colocado no ICBAS foi superior à do São João…

É um fenómeno que se modifica ao longo do tempo e que tem diversas justificações. Eu não lhe dou um valor absoluto e acho que, em nada, diminui a FMUP. É muito bom ver que as duas faculdades de medicina do Porto continuam a ser as preferidas, em Portugal, dos estudantes que querem fazer medicina e, um dia, ser médicos. Eu sou muito contra a oposição e muito favor de que as pessoas colaborem, partilhem, acho que, talvez, até devêssemos partilhar mais e, em conjunto, achar que, coletivamente, podemos todos contribuir para a Universidade do Porto, que é, no fundo, quem está por trás de todos nós.

“Os internos de Anatomia Patológica têm um salário inferior aos internos de outros serviços”

Uma das dificuldades, até assumida pela professora, que enfrenta um estudante de medicina, é o momento da escolha da especialidade. O que é que a sua experiência diz ser o melhor conselho a dar aos alunos nesse momento?

A escolha da especialidade, como provavelmente sabe, é feita em Portugal em função da classificação obtida num exame nacional. É um exame feito em moldes um bocado antiquados e isso está a ser modificado, o que é muito bom. Agora os exames vão ser mais baseados em problemas concretos e vão testar a capacidade dos candidatos a médicos de encarar um problema, dissecá-lo e, no fundo, identificar as causas, discutir métodos de diagnóstico e considerar opções terapêuticas. O que é que acontece na prática? Nesta altura, há médicos que não têm a oportunidade de encontrar um emprego no serviço público e, portanto, isso é uma condicionante das opções. Por outro lado, há muitos estudantes que vêm aqui fazer projetos de opção, gostam muito da experiência e que até, penso eu, considerariam ficar na Anatomia Patológica, mas há, depois, o mundo real. O mundo real é confrontado com a facilidade de encontrar atividades para além das do serviço público, também no serviço privado e de ter uma área de atuação com compensações salariais. Uma das coisas que mais me atrai na Anatomia Patológica é a liberdade. Agora estou a conversar convosco e, quando se forem embora, vou ver exames de doentes e não tenho uma fila de pessoas lá fora angustiadas porque não vão ser atendidas em tempo útil. Essa liberdade dá-me um prazer e uma satisfação imensa, foi uma das razões porque escolhi Anatomia Patológica. Eu queria continuar a participar numa atividade clínica, a Anatomia Patológica é uma atividade clínica; gostava de participar no ensino e fazer investigação. Acho que aqui estão reunidas as condições para fazer isso. Acontece, no entanto, que os nossos internos têm um horário de trabalho e, depois, vão embora. Não têm trabalho noturno nem serviço de urgência aos fins de semana. Quer o trabalho noturno, quer o serviço de urgência em feriados, fins de semana, acarretam uma remuneração suplementar. Os nossos internos têm um salário inferior ao dos internos que têm uma atividade noutros serviços clínicos. Nos tempos que correm, as pessoas têm de ter isso em consideração também. Têm ambições pessoais e têm de saber como vão conseguir ter satisfação na sua atividade e, ao mesmo tempo, ter algum equilíbrio que lhes permita, do ponto de vista pessoal e familiar, manter o nível por que aspiram. Por outras palavras, nesse sentido, a Anatomia Patológica está em desvantagem porque remuneratoriamente não oferece as mesmas condições de outros; noutros sentidos está em vantagem: liberdade de atuação, conciliação de diversos mundos… Na prática, o que eu acho é que devia haver incentivos, também, para quem faz Anatomia Patológica no seu período de formação e depois desse. A oportunidade de uma pessoa exercer a sua atividade, como eu faço porque eu trabalho em exclusividade, e daí poder satisfazer os standards que constituem o seu horizonte, é melhor do que ter necessidades pessoais ou familiares que obriguem a procurar um outro emprego e um complemento salarial. No fundo, isso dispersa a atenção, aumenta o esforço e diminui a disponibilidade.

Posso depreender das suas palavras que, na sua opinião, a precariedade que assola quase todas as áreas portuguesas, já chegou à medicina?

Já, já chegou à medicina. [Pausa] Chegou de forma claríssima à medicina.

“A Satisfação não pode passar a sacrifício”

O que pode o Serviço Nacional de Saúde fazer para alterar a situação?

Acho que o que o SNS pode fazer, que é um imperativo, é reforçar as estruturas do SNS. Numa sociedade como a nossa, há serviço público e privado e eu só entendo a coexistência passiva de ambos com muita qualidade nos dois setores. Eu gosto muito de trabalhar nas condições em que trabalho, porque me dá uma maleabilidade e um leque de opções mais vasto. Não tenho nada contra quem tem uma atividade privada, mas acho complicado andar a saltar de um sítio para o outro. O ideal seria que o SNS realmente reforçasse várias áreas na estabilidade, recrutamento, colmatar as necessidades que são prementes em diversos setores. Há muitas coisas a fazer. A Anatomia Patológica é uma área manifestamente carenciada. Nós precisávamos de ter mais colaboradores, porque a multiplicidade de coisas que fazemos, hoje, está em risco com o número de pessoas que aqui trabalham. Precisávamos que fossem substituídas as pessoas que entretanto saíram por opção de vida, porque foram para outros sítios ou porque chegaram à idade da reforma. Nós temos assistido a muitas saídas e poucas substituições. O esforço das pessoas é limitado e não deve resvalar. O que é uma satisfação não deve passar a ser um esforço tão grande que passa a ser um sacrifício. Esse, para mim, é que é o momento crítico da desilusão.

“Não é gastar tempo, é ocupar tempo”

Em função do que disse, acredita que o seu prémio também valorize mais a Anatomia Patológica?

Claro. Essa é uma das vertentes que dá mais valor a um prémio desta natureza. No fundo, é salientado o papel da Anatomia Patológica e a Anatomia Patológica tem vindo a ganhar uma importância crescente pelas exigências do exercício médico atual. Se quiser um exemplo onde isso se percebe muito bem é no domínio da oncologia, no tratamento do cancro. As regras em todo o mundo dizem que o diagnóstico, a orientação terapêutica, o seguimento dos doentes devem ser feitos com base em decisões tomadas em grupos multidisciplinares, com participação obrigatória de oncologistas, cirurgiões, gastroenterologistas, endocrinologistas e patologistas em todos. Neste hospital, por exemplo, há vários grupos multidisciplinares oncológicos que se dedicam a especialidades diferentes e a Anatomia Patológica está representada em todos. Isto, como compreende, é um esforço aumentado porque temos de dividir as pessoas que temos pela participação nesses grupos oncológicos. Não é gastar tempo, mas é ocupar tempo. Ocupar no sentido de serem momentos em que tem de haver muita ponderação, responsabilização coletiva e esta é uma das atividades que mais visibilidade dá à Anatomia Patológica. Realmente, a Anatomia Patológica tem um papel central no diagnóstico, seguimento dos doentes e, nos tempos que correm, na identificação de biomarcadores. Os biomarcadores são, hoje, utilizados como alvos terapêuticos na chamada terapêutica dirigida. Na minha perspetiva, a importância da Anatomia Patológica tem vindo a crescer à medida que a medicina se torna de maior precisão. Pode dizer-me assim: “Mas isso é uma ilusão porque, mais cedo ou mais tarde, vai haver sistemas de identificação de biomarcadores que substituem a sua pesquisa individual ao microscópio e aumentam a rentabilidade e tudo mais”. Mas, para esses resultados da nova tecnologia que permite o estudo em simultâneo de um maior número de biomarcadores, é preciso ter a certeza que o material que foi utilizado para esse estudo é um material representativo da lesão, do tumor neste caso porque estamos a falar de oncologia. Essa identificação tem de ser feita por um patologista. Portanto, não vejo com preocupação extrema que os desenvolvimentos tecnológicos venham a diminuir o papel da Anatomia Patológica; pelo contrário, vêm clarificar e maximiza-lo.

Para terminar professora, quais são, para si, as caraterísticas fundamentais para se ser um bom professor e de um aluno de medicina?

Curiosidade, curiosidade e curiosidade [Risos]. Disciplina. É muito grande o esforço que deve ser feito e, portanto, a disciplina é um aspeto importante. Disciplina no sentido de ser capaz de organizar o tempo para poder fazer tudo. Eu às vezes digo aos alunos que, por exemplo, quando um aluno vai a uma aula que não é obrigatória, como uma aula teórica e está nessa aula distraído ou a distrair, isso é um desperdício de tempo inaceitável no ensino universitário. É uma fase da vida em que as pessoas precisam tanto de adquirir conhecimentos diversificados e conhecimentos de vida, até. As pessoas precisam de tempo para si, de amadurecimento e tudo mais. Se uma pessoa está naquele momento para aquele fim, deve estar; senão, deve ir fazer outra coisa mais útil. A disciplina em termos de organização do tempo, para mim, é fundamental e foi sempre. Eu consegui introduzir alguma disciplina na minha vida, senão também não conseguia fazer várias coisas ao mesmo tempo. Introduzo aqui a curiosidade, a disciplina, destas duas advém o sentido crítico e a necessidade de formação contínua.


Texto: José Machado

Fotografias: Vasco Coimbra


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